sexta-feira, 11 de maio de 2012

A garota que nunca mais vai usar salto alto



Ela tem quase trinta e as vezes em que teve de se equilibrar em paralelepípedos ou escadas sobre varetas de cinco a quinze centímetros arrancaram-lhe o pouco ânimo que tinha para aceitar o que a fazia sofrer em nome de uma imagem supervalorizada. 

Sempre soube que o mundo respeita mais as garotas que se impingem esse tipo de sofrimento: belos pares de sapatos em pés com tendões contidos que, com sorte, criarão alguma aparência de superioridade. Para produzir uma imagem de alguém que nada teme, que com nada se importa: as crises na Europa, a fome na esquina, o atraso do ônibus, a alta do preço das batatas Pringles, as metas inatingíveis da empresa, a invasão de frases falsas da Clarice Lispector no Facebook. Porque elas não precisam se importar, já que tudo reforça a elegância e sofisticação de uma mulher de salto. Lady Di era capaz de se abaixar para beijar uma criança maneta vítima da radiação do alto de seus 16 centímetros com brilhantes. Angelina Jolie anda em tapetes vermelhos, ao lado de um lindo Brad Pitt, com salto agulha e trinta e duas crianças asiáticas recém-adotadas, virando um exemplo de vida feminina no mundo contemporâneo. A sua chefe chega às sete e meia da manhã, com seu bom humor de boutique, ressoando toc toc toc pelo escritório inteiro e, oras, todos a respeitam ou fingem muito bem que. Danuza Leão certa vez disse que na hora de terminar um relacionamento uma mulher não deve nunca aparecer com um simples tênis, pois, segundo ela, o salto alto confere mais confiança, fazendo da vulnerável mocinha uma criatura muito mais elegante e admirada pelo futuro ex-parceiro, e, quiçá, pelo universo.

Olha a incoerência aí. Dignas de admiração, meus caros, não são as que acumulam joanete em nome de uma pretensa sofisticação e um sofrido respeito às aparências. São as que, apesar do último grito da moda ser o sapato de bico fino e salto quadrado do tipo arranha-céu, ousam viver a vida com a planta dos pés totalmente no chão, o que colabora para que tenham também as ideias no lugar certo. Ah, as moças das sapatilhas. Elas merecem o meu aplauso, o seu, o da realeza mundial e da mídia, o respeito de todo um sistema que conspira para fazer do sofrimento feminino (quanto maior, melhor) um índice de beleza. Elas, as moças das sapatilhas, são capazes de entrar em uma sala cheia de executivos engomadinhos sem fazer um mínimo toc toc e, mesmo com dez centímetros a menos de altura, executar com toda qualidade (mais até, vai) o trabalho das que precisam andar com os calcanhares sempre nas alturas.

Ah, as que são a favor da natureza, gosto bem mais delas. Já imaginou Eva, no Paraíso, andando com os calcanhares levantados? Ou dizendo “ei, Adão, me espera, meu salto está afundando nesse belo campo florido, podemos ir pra um lugar mais urbano, quem sabe um shopping?”? Não tem sentido nenhum.

A chance e o tamanho da queda, ah, meu bem, isso também conta ponto contra. Basta pensar em uma passarela com lindas modelos em constante risco. O que dizer da pressão psicológica que é temer um tombo colossal, minuto a minuto? E o pânico de ver seus segundos de hesitação e drama virarem hit no Youtube? Porque a humilhação de cair em público ou mesmo a dor de torcer o pé são infinitamente menores quando você está no chão, entre meros mortais, do que quando está lá em cima e precisa se preocupar em manter a pose. Mais ainda: como lidar com a impossibilidade de sair correndo quando der vontade ou, pior, quando for preciso?

Sou a favor de um mundo mais transparente: sapatos de acrílico para que possamos enxergar o absurdo dos calcanhares levantados. Milhares de mulheres mostrando veias saltadas e dedinhos sobrecarregados com o peso da hipocrisia. Mentira, sou a favor de um mundo absolutamente sem saltos. Um tempo e um lugar onde as alegrias serão maiores e mais satisfatórias do que chegar em casa e desencaixotar os pés para coloca-los em uma bacia com água morna. Sou a favor de felicidade em seu estado puro: mulheres respeitadas por seu tamanho e valores reais. E do adeus aos tombos estratosféricos alimentando o sadismo alheio no Youtube. Afinal, estamos rindo de quem, mesmo? 

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