Ela tem quase trinta e as vezes em que teve de se equilibrar
em paralelepípedos ou escadas sobre varetas de cinco a quinze centímetros
arrancaram-lhe o pouco ânimo que tinha para aceitar o que a fazia sofrer em
nome de uma imagem supervalorizada.
Sempre soube que o mundo respeita mais as garotas que se
impingem esse tipo de sofrimento: belos pares de sapatos em pés com tendões
contidos que, com sorte, criarão alguma aparência de superioridade. Para
produzir uma imagem de alguém que nada teme, que com nada se importa: as crises
na Europa, a fome na esquina, o atraso do ônibus, a alta do preço das batatas
Pringles, as metas inatingíveis da empresa, a invasão de frases falsas da
Clarice Lispector no Facebook. Porque elas não precisam se importar, já que
tudo reforça a elegância e sofisticação de uma mulher de salto. Lady Di era
capaz de se abaixar para beijar uma criança maneta vítima da radiação do alto
de seus 16 centímetros com brilhantes. Angelina Jolie anda em tapetes
vermelhos, ao lado de um lindo Brad Pitt, com salto agulha e trinta e duas
crianças asiáticas recém-adotadas, virando um exemplo de vida feminina no mundo
contemporâneo. A sua chefe chega às sete e meia da manhã, com seu bom humor de
boutique, ressoando toc toc toc pelo escritório inteiro e, oras, todos a
respeitam ou fingem muito bem que. Danuza Leão certa vez disse que na hora de
terminar um relacionamento uma mulher não deve nunca aparecer com um simples
tênis, pois, segundo ela, o salto alto confere mais confiança, fazendo da
vulnerável mocinha uma criatura muito mais elegante e admirada pelo futuro
ex-parceiro, e, quiçá, pelo universo.
Olha a incoerência aí. Dignas de admiração, meus caros, não
são as que acumulam joanete em nome de uma pretensa sofisticação e um sofrido
respeito às aparências. São as que, apesar do último grito da moda ser o sapato
de bico fino e salto quadrado do tipo arranha-céu, ousam viver a vida com a
planta dos pés totalmente no chão, o que colabora para que tenham também as
ideias no lugar certo. Ah, as moças das sapatilhas. Elas merecem o meu aplauso,
o seu, o da realeza mundial e da mídia, o respeito de todo um sistema que
conspira para fazer do sofrimento feminino (quanto maior, melhor) um índice de
beleza. Elas, as moças das sapatilhas, são capazes de entrar em uma sala cheia
de executivos engomadinhos sem fazer um mínimo toc toc e, mesmo com dez
centímetros a menos de altura, executar com toda qualidade (mais até, vai) o
trabalho das que precisam andar com os calcanhares sempre nas alturas.
Ah, as que são a favor da natureza, gosto bem mais delas. Já imaginou Eva, no Paraíso, andando com os calcanhares levantados? Ou dizendo “ei, Adão, me espera, meu salto está afundando nesse belo campo florido, podemos ir pra um lugar mais urbano, quem sabe um shopping?”? Não tem sentido nenhum.
A chance e o tamanho da queda, ah, meu bem, isso também
conta ponto contra. Basta pensar em uma passarela com lindas modelos em
constante risco. O que dizer da pressão psicológica que é temer um tombo
colossal, minuto a minuto? E o pânico de ver seus segundos de hesitação e drama
virarem hit no Youtube? Porque a humilhação de cair em público ou mesmo a dor
de torcer o pé são infinitamente menores quando você está no chão, entre meros
mortais, do que quando está lá em cima e precisa se preocupar em manter a pose.
Mais ainda: como lidar com a impossibilidade de sair correndo quando der
vontade ou, pior, quando for preciso?
Sou a favor de um mundo mais transparente: sapatos de
acrílico para que possamos enxergar o absurdo dos calcanhares levantados.
Milhares de mulheres mostrando veias saltadas e dedinhos sobrecarregados com o
peso da hipocrisia. Mentira, sou a favor de um mundo absolutamente sem saltos.
Um tempo e um lugar onde as alegrias serão maiores e mais satisfatórias do que
chegar em casa e desencaixotar os pés para coloca-los em uma bacia com água
morna. Sou a favor de felicidade em seu estado puro: mulheres respeitadas por
seu tamanho e valores reais. E do adeus aos tombos estratosféricos alimentando
o sadismo alheio no Youtube. Afinal, estamos rindo de quem, mesmo?